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Novo conto: Ouço.


Por: Franz Lima.
Qual o som do silêncio? Esta pergunta sempre ronda os que amam Alan, nascido como surdo-mudo. Ninguém jamais ouviu um som sequer vindo dele. Ele também jamais ouviu um único ruído. Mas havia algo que o fazia se tornar uma pessoa diferente: sua beleza.
Desde pequeno o menino destacou-se por uma face quase angelical. Olhos de um azul muito claro, rosto perfeito e um sorriso que cativaria até o mais nefasto dos seres humanos. Não havia como não amar aquela criança e foi assim que o menino cresceu e transformou-se em um homem.
Mas não há como narrar essa história sem destacar que o homem foi moldado à base de muita malícia. E o que poderiam esperar as pessoas de um indivíduo que teve tudo por ser 'especial'? Usando sua limitação física, Alan cresceu como um manipulador. Ele obtinha tudo que desejasse, bastando apelar para sua condição de surdo-mudo. Diante das pessoas, não ouvir ou falar eram condições torturantes, algo próximo do sofrimento absoluto e, por isso, todos faziam o máximo para agradar a criança. 
O pai do jovem foi o principal responsável por essa involução. Joaquim cobriu-o de presentes, fez todas as suas vontades e jamais lhe disse um único não. Negar algo para Alan era inconcebível para seu pai.
Ciente de tudo isso, o menino alternou períodos de relativa calma com crises de raiva onde novamente o silêncio era o culpado por tamanho ódio. Quantas vezes ele destruiu quase tudo em sua casa? Quantas vezes ele machucou com a desculpa de sentir-se frustrado? A limitação física era a justificativa para a falta de limites no comportamento. E assim os anos se passaram...
Joaquim valeu-se de tudo que pode para garantir a segurança do filho. Subornou, pediu desculpas, pagou prejuízos, implorou por piedade. Mas a verdade é que um pai não poupa esforços para proteger um filho, mesmo que seja o filho fruto de um ventre que definhou após o nascimento da criança. Não saíam da mente de Joaquim as imagens de sua mulher morrendo por complicações no parto. Ele orou por sua vida e, ao final, orou para que a morte fosse menos dolorosa possível. Suas preces não foram atendidas.
Hoje, já com 25 anos, Alan era um mestre da mentira, da dissimulação e da manipulação. Adivinhem quem foi seu principal fantoche? Sim, o próprio pai. Entretanto, isso não o impedia de continuar a tirar o que queria, não importando qual seria o preço cobrado. 

Em uma noite de maio, logo após o dia das mães, Alan entrou em um motel com sua nova namorada. O namoro era muito recente, apenas 3 dias. Mas a menina estava perdidamente apaixonada por aquele homem alto e belo. Ele, em contrapartida, apenas queria transar. Ele queria apenas ouvir seus gritos...

Horas mais tarde, ele sai do motel e avisa, por meio de um bilhete, para que acordem a garota uma hora após. A conta foi paga. O que o pessoal da portaria não sabia era que ninguém jamais poderia acordar novamente a mulher. Ela estava estrangulada.
Outro fato que todos desconheciam: essa era a oitava vítima do maníaco. Alan não fazia questão de esconder o rosto ou deixar evidências de seus crimes. Para ele, cada nova morte era um sussurro, uma esperança de ao menos ouvir algo. Para quebrar o silêncio ele matava. Quanto menos a vítima reagia, mais violenta era a morte.

E o que poderia impedir a continuidade dessa loucura? Apenas a confiança excessiva. Como um caçador, o louco colecionava as línguas de suas vítimas. Em sua mente, elas falavam com ele, contavam histórias e o faziam sentir-se normal. 
Em um sábado, Alan saiu de casa e informou ao pai que iria para um encontro. 'Uma nova namorada', disse através da linguagem de libras.
Joaquim contemplou seu filho pelas costas. Ele saiu sem maiores explicações, como sempre. Com dinheiro e sem horário para voltar, o filho faria o que quisesse. Mas, questionou o pai, por que ele jamais trouxe uma única namorada? Essa não era a primeira vez que o velho homem pensava no assunto. Em seu íntimo ele sabia que havia algo de errado. Será que o filho era gay ou um viciado? O que escondia aquele menino? - questionou.
O fato era que não importava com quem ele estava transando ou qual era o vício. O que importava era proteger o filho. Com esse pensamento, Joaquim entrou no quarto dele e começou uma busca. Nada. Então, ao abrir o frigobar, contemplou um pote com algo que parecia uma coleção de lesmas. Ao aproximar os olhos, seu coração quase parou. Eram línguas. De quem ou do que, não sabia, mas eram línguas. Que tipo de coleção doentia era aquela?
Longas horas se passaram e, sem dormir, ele ficou pensando no que vira. Tudo estava estranho. Tudo estava errado. Mas havia como contornar aquela conduta sinistra. Com a devida atenção e carinho, certamente, ele iria voltar a ser o bom menino de sempre. 
Alan chegou apenas na manhã do dia seguinte. Seu pai estava sentado na poltrona, a televisão ligada em um programa de vendas. O velho estava visivelmente cansado, o que não o impediu de interpelar o filho. Perguntas foram feitas. Respostas foram dadas. Alan não poupou o pai de um único detalhe e, com orgulho, exibiu sua mais nova aquisição. 
Joaquim tremeu. Os olhos estavam lacrimejando e era vergonhoso ver seu filho gesticular e lhe dizer 'o que vai fazer? Me prender?'.
O que mais restava para o velho pai? Ele tentou se aproximar do filho e lhe dar um abraço, tentou demonstrar que poderiam buscar uma solução para o problema, mas ele foi desprezado com um empurrão. As lágrimas desceram por sua face. Naquele momento, seu filho havia morrido diante dele.

Alan foi para o banho. Seu pai para o fundo do apartamento. As águas banhavam o jovem. O choro lavava a face do homem mais velho. O orgulho estava estampado no rosto do matador. O lamento impregnou a alma do pai.

Com o corpo e a alma lavados, Alan saiu do banheiro e se deparou com o homem que lhe deu tudo, o homem que buscou sempre ser o melhor para ele. Contemplando seu pai, que estava envolvido por um silêncio maior do que o costumeiro, ele percebeu que havia algo errado. Joaquim estava ao lado de uma das janelas, estático. Sua face sulcada só indicava uma coisa: perda da esperança. Não houve palavras. Não houve gestos ou sinais de linguagem. Houve apenas a queda. Alan se esticou, buscando agarrar o pai, porém era tarde demais. Ao olhar para baixo, viu o corpo despencar. Ali se encerrou a vida de um homem que só quis o melhor para seu filho. Ali começou o inferno na vida de um ingrato...

Alan nunca mais foi o mesmo. O sorriso confiante e o orgulho desmedido deram lugar a uma face fechada e reações que mostravam fortes traços de loucura. Todos os familiares mais próximos concluíram que isso era consequência do trauma pela perda do pai. Todos estavam enganados. O que ninguém jamais ouviu foram os gritos. Os gritos de lamento e angústia de quem amou e morreu por esse amor. Os gritos que só podiam ser ouvidos por uma única pessoa durante cada segundo da existência que lhe restava. Os gritos que passaram a atormentar a vida de um filho que jamais quis realmente "ouvir" o amor do próprio pai e que agora estaria condenado a ouvir, infinita e literalmente, seu grito de morte.

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