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Leiam a sinopse e o primeiro capítulo de O Vento pela Fechadura (série A Torre Negra), o novo livro de Stephen King.

Sinopse:
A lenda do menino Tim e suas aventuras em busca do mago Merlyn acabam revelando muitas verdades sobre Gilead, o Mundo Médio e o Pistoleiro.
O novo livro encaixa mais uma peça no vasto quebra-cabeças que cerca a saga, oferecendo lendas e histórias fantásticas de Gilead, ao mesmo tempo em que investiga o passado doloroso do pistoleiro Roland Deschain. No meio do caminho entre o Palácio Verde e Calla, o pistoleiro Roland Deschain e seu ka-tet - Jake, Susannah, Eddie e Oi, o trapalhão são obrigados a acampar numa cidade fantasma. Caso contrário, seriam congelados com a chegada súbita e mortal de uma borrasca, tempestade única ao Mundo Médio.
Para afastar o tédio da espera, Roland distrai o grupo com uma história de seu passado. Porém, no centro dessa lembrança, o jovem Roland, do passado, também narra uma fábula de sua infância, registrada em seu livro favorito: O Vento Pela Fechadura.

Primeiro Capítulo:

Durante os dias após eles terem saído do Palácio Verde, que não era Oz, afinal de contas — mas que agora era a tumba do sujeito desagradável que o ka-tet de Roland conhecera como o Homem do Tique-taque, o menino Jake começou a andar cada vez mais à frente de Roland, Eddie e Susannah.
— Você não se preocupa com ele? — perguntou Susannah a Roland. — Sozinho por aí?
— Ele está com Oi — comentou Eddie ao se referir ao trapalhão que adotara Jake como amigo especial. — O sr. Oi se dá muito bem com gente boa, mas ele tem uma boca cheia de dentes afiados para quem não for tão gente boa assim. Como aquele tal de Gasher descobriu, pra tristeza dele.
— Jake também tem a arma do pai — acrescentou Roland. — E sabe usá-la. Isto Jake sabe muito bem. E ele não sairá do Caminho do Feixe de Luz. — Roland apontou adiante com a mão sem dois dedos. O céu nublado estava praticamente parado, mas um único corredor de nuvens se movia gradualmente para sudeste. Na direção da terra do Trovão, se o bilhete deixado para eles pelo homem que se chamava RF dissesse a verdade.
Na direção da Torre Negra.
— Mas por quê... — Susannah começou a perguntar, mas a cadeira de rodas topou em um calombo. — Cuidado por onde você me empurra, docinho.
— Foi mal — disse Eddie. — O Departamento de Rodovias não tem feito manutenção neste trecho ultimamente. Eles devem estar pas- sando por cortes no orçamento.
Não era uma rodovia, mas era uma estrada... ou foi: dois sulcos praticamente invisíveis, com uma cabana caindo aos pedaços para marcar o caminho, de vez em quando. Naquela manhã, mais cedo, eles até passaram por uma loja abandonada com uma placa que mal deu para ler: ARMAZÉM DE TOOK. Eles investigaram o interior atrás de mantimentos — Jake e Oi ainda estavam presentes então — e não encontraram nada além de antigas teias de aranha empoeiradas e o esqueleto do que tinha sido um grande guaxinim, um pequeno cachorro ou um zé-trapalhão. Oi deu uma cheirada superficial e depois mijou nos ossos, antes de sair da loja para se sentar no calombo no meio da velha estrada com o rabinho em volta do corpo. O trapalhão se virou para a direção de onde eles vieram e fungou o ar.
Roland tinha visto o trapalhão fazer isto várias vezes ultimamente, e, embora não dissesse nada, ele refletiu a respeito. Alguém que os seguia, talvez? Roland não acreditava nisso realmente, mas a postura do trapalhão — o focinho empinado, as orelhas eriçadas, o rabo enroscado — evocava uma velha memória ou associação que ele não sabia dizer qual era exatamente.
— Por que Jake quer ficar sozinho? — perguntou Susannah.
— Você considera isto preocupante, Susannah de Nova York? — indagou Roland.
— Sim, Roland de Gilead, eu considero isso preocupante. — Susannah deu um sorriso razoavelmente amável, mas os olhos tinham o velho brilho cruel. Era a parte Detta Walker dentro dela, considerou Roland. Este traço jamais sumiria completamente, e o pistoleiro não achava isso ruim. Sem a mulher estranha que Susannah fora um dia cravada em seu coração como uma lasca de gelo, ela seria apenas uma bela jovem negra com as pernas cortadas abaixo dos joelhos. Com Detta a bordo, Susannah era uma pessoa que impunha respeito. Uma pessoa perigosa. Uma pistoleira.
— Ele tem muito o que pensar — falou Eddie baixinho. — Jake passou por muita coisa. Nem todo garoto volta dos mortos. E é como o Roland diz, se alguém tentar peitá-lo, vai se dar mal. — Eddie parou de empurrar a cadeira de rodas, limpou a testa suada com o braço e olhou para Roland. — Tem alguém neste fim de mundo em especial, Roland? Ou todos foram embora?
— Ah, tem algumas pessoas, acredito.
Roland mais do que acreditava; o grupo tinha sido espiado várias vezes enquanto continuava a seguir pelo Caminho do Feixe de Luz. Em uma ocasião, eles foram vistos por uma mulher assustada, abraçada a duas crianças e com um bebê em uma tipoia pendurada no pescoço. Outra vez, foram observados por um velho fazendeiro, um meio-mutante com um tentáculo que estrebuchava, pendurado em um canto da boca. Eddie e Susannah não viram nenhuma dessas pessoas, nem sentiram a presença de outras que Roland tinha certeza de que, da segurança do bosque e do matagal alto, acompanhavam o avanço do grupo. Eddie e Susannah tinham muito que aprender.
Mas, ao que parecia, pelo menos eles aprenderam um pouco do que precisariam, porque Eddie agora fez uma pergunta.
— São essas pessoas cujo cheiro Oi não para de sentir?
— Não sei. — Roland pensou em acrescentar que tinha certeza de que havia outra coisa na estranha cabecinha de trapalhão de Oi, mas de- cidiu não falar. O pistoleiro passou muitos anos sem um ka-tet, e não re- velar os pensamentos se tornou um hábito. Um hábito que ele teria que romper, se quisesse que o tet permanecesse forte. Mas não agora, não na- quela manhã.
— Vamos seguir em frente — disse ele. — Tenho certeza de que encontraremos Jake à nossa espera mais adiante.
Duas horas depois, quase ao meio-dia, eles venceram uma elevação e pararam, com vista para um largo rio que se movia lentamente, como chumbo líquido sob o céu nublado. Na margem noroeste — o lado do ka-tet —, havia uma construção parecida com um celeiro, pintada num tom de verde tão intenso que parecia berrar no dia escuro. A boca se projetava sobre a água, apoiada em estacas pintadas no mesmo tom de verde. Ancorada por cabos grossos em duas dessas estacas estava uma grande balsa quadrada, com quase 30 metros de largura e pintada em listras vermelhas e amarelas. Um poste alto de madeira, parecido com um mastro, se erguia no meio, mas não havia sinal de vela. Várias cadei- ras de vime ficavam diante do poste, voltadas para a margem do lado do rio onde eles se encontravam. Jake estava sentado em uma das cadeiras. Ao lado dele, havia um velho com um grande chapéu de palha, calças verdes folgadas e botas de cano alto. O velho usava uma veste branca e fina — o tipo de camisa que Roland conhecia como slincum. Jake e o velho pareciam comer popquins bem recheados, que deixaram Roland com água na boca.
Oi estava atrás dos dois, na beirada da balsa com pintura de circo, e parecia fascinado com o próprio reflexo na água. Ou talvez com o reflexo do cabo de aço que corria acima, de uma ponta à outra do rio.
— É o Whye? — perguntou Susannah a Roland. — É sim. Eddie sorriu. — Se você diz que é o Whye, eu digo, uai, por que não? — Ele ergueu uma mão e acenou sobre a cabeça. — Jake! Ei, Jake! Oi! Jake devolveu o aceno e, embora o rio e a balsa ainda estivessem a uns 400 metros de distância, os olhos de todos os integrantes do grupo eram aguçados, e eles viram o branco dos dentes do sorriso de Jake. Susannah colocou as mãos em concha em volta da boca. — Oi! Oi! Venha para mim, docinho! Venha ver a mamãe! Oi soltou ganidos agudos, que eram o mais perto que ele chegava de latidos, e veio em disparada pela balsa, desaparecendo dentro da estrutura parecida com um celeiro, e depois saindo do lado mais próximo. O trapa- lhão subiu correndo pelo caminho com as orelhas abaixadas junto ao crânio e com um brilho nos olhos rodeados de dourado.
— Devagar, docinho, ou vai ter um ataque cardíaco! — berrou Susannah, rindo.
Oi pareceu encarar isto como uma ordem para acelerar. Ele chegou à cadeira de rodas de Susannah em menos de dois minutos, saltou no colo dela, depois pulou para o chão novamente e olhou para todos alegremente.
— Olan! Ed! Suze!
— Hail, sir Throcken. — Roland usou a antiga palava para trapalhão que ouviu pela primeira vez em um livro que sua mãe leu para ele: O throcken e o dragão.
Oi ergueu a pata, urinou na grama, depois voltou a olhar pelo caminho por onde viera e fungou o ar, com os olhos no horizonte.
— Por que ele não para de fazer isso, Roland? — perguntou Eddie.
— Não sei. — Mas ele quase sabia. Será que não era alguma antiga história, não O throcken e o dragão, mas outra parecida? Roland achava que sim. Por um instante, ele pensou em olhos verdes que observavam no escuro e sentiu um pequeno arrepio, não de medo exatamente (embora pudesse ser um pouco disso), mas de recordação. Então a sensação passou.
Vai cair água se Deus quiser, pensou Roland, e só percebeu que havia falado em voz alta quando Eddie disse:
— Hã?
— Deixa pra lá — falou Roland. — Vamos ter uma confabulação com o novo amigo de Jake, que tal? Talvez ele tenha um ou dois popquins sobrando.
Eddie, cansado da comida difícil de mastigar que eles chamavam de burritos dos pistoleiros, ficou imediatamente radiante.
— Aí sim — ele disse e olhou para um relógio imaginário no pulso bronzeado. — Meu Deus, tá bem na hora de encher o bucho.
— Cale a boca e empurre, fofinho — falou Susannah. Eddie calou a boca e empurrou.
O velho estava sentado quando eles entraram no ancoradouro e se levan- tou quando eles surgiram no lado do rio. Viu as armas que Roland e Eddie usavam — os grandes revólveres com cabos de sândalo —, e os olhos se arregalaram. O velho ficou em um joelho só. O dia estava calmo, e Roland chegou a ouvir os ossos do homem estalarem.
— Hail, pistoleiro — cumprimentou ele e levou ao centro da testa um punho inchado pela artrite. — Eu vos saúdo.
— Levante-se, amigo — falou Roland, na torcida de que o velho fosse um amigo; Jake parecia achar que ele era, e Roland tinha passado a confiar nos instintos do menino. Isso sem falar nos instintos do zé-trapa- lhão. — Levante-se, do.
Como o velho estava com dificuldade para ficar de pé, Eddie subiu a bordo e ofereceu um braço. — Obrigado, filho, obrigado. Você é um pistoleiro também ou um aprendiz?
Eddie olhou para Roland. Roland não disse nada, então Eddie se voltou para o velho, deu de ombros e sorriu.
— Um pouco de cada, acho. Eu sou Eddie Dean, de Nova York. Esta é minha esposa, Susannah. E este é Roland Deschain. De Gilead.
O ribeirinho arregalou os olhos. — De Gilead mesmo? É isso que é? — De Gilead mesmo — concordou Roland e sentiu uma mágoa estranha no peito. O tempo era um rosto na água e, como o grande rio diante deles, só fazia fluir.
— Subam a bordo, então. E sejam bem-vindos. Este jovem e eu já somos grandes amigos, somos sim. — Oi subiu na grande balsa e o velho se curvou para fazer carinho na cabeça erguida do trapalhão. — E nós também, né, companheiro? Você se lembra do meu nome?
— Bix! — respondeu Oi prontamente, depois se voltou para no- roeste novamente e ergueu o focinho. Os olhos rodeados de dourado en- caravam com fascínio a coluna de nuvens em movimento que marcava o Caminho do Feixe de Luz.
— Querem comer? — perguntou Bix. — O que tenho é pouco e ruim, mas, seja como for, eu ficaria feliz em dividir.
— Obrigada — disse Susannah. Ela olhou para o cabo acima, que corria pelo rio na diagonal. — Isto é uma balsa, não é?
— Sim — falou Jake. — Bix me contou que tem gente do outro lado. Não perto, mas também não longe. Ele acha que são arrozeiros, mas não vêm muito por aqui.
Bix saiu da grande balsa e entrou no ancoradouro. Eddie esperou até ouvir o velho remexer as coisas de um lado para o outro, depois se abaixou até Jake e disse em voz baixa:
— Ele está bem?
— Tá ótimo — respondeu Jake. — É para lá que nós vamos mesmo, e ele está contente em ter alguém para levar. Bix disse que faz muitos anos.
— Aposto que faz — concordou Eddie.
Bix reapareceu com um cesto de vime, que Roland tirou dele — caso contrário o velho poderia ter tropeçado e caído na água. Logo todos esta- vam sentados em cadeiras de vime, mastigando popquins recheados com alguma espécie de peixe rosa. Estavam temperados e deliciosos.
— Comam o quanto quiserem — falou Bix. — O rio está cheio de lambaris, e a maioria é normal. Os mutantes eu devolvo. Antigamente a ordem era de jogar os ruins nos bancos de areia para que não se reprodu- zissem mais, e por um tempo eu joguei, mas agora... — Ele deu de ombros. — Viva e deixe viver é o que eu digo. Como alguém que viveu muito, acho que posso afirmar isso.
— Quantos anos você tem? — perguntou Jake.
— Eu fiz 120 há algum tempo, mas já perdi a conta, então é isso. O tempo é curto deste lado da porta, entende?
Deste lado da porta. Aquela memória de uma história antiga qual- quer incomodou Roland novamente, depois passou.
— Vocês seguem aquilo? — O velho apontou para a faixa de nuvens em movimento no céu.
— Sim. — Para Callas ou mais além? — Mais além. — Para a grande escuridão? — Bix parecia perturbado e fascinado pela ideia. — Nós seguimos nosso rumo — falou Roland. — Quanto você cobraria para nos levar, sai balseiro? Bix riu. O som era rouco e alegre.
— Dinheiro não serve para nada se não tiver no que gastar. Vocês não têm gado, e é bem óbvio que eu tenho mais comida do que vocês. E você sempre pode sacar a arma e me obrigar.
— Jamais — disse Susannah com uma expressão de perplexidade.
— Eu sei disso — falou Bix enquanto abanava a mão para ela. — Os Salteadores poderiam fazer isso, e depois ainda queimariam minha balsa assim que chegassem ao outro lado, mas pistoleiros de verdade, jamais. E pistoleiras também, creio eu. Você não parece armada, senhorita, mas com mulher nunca dá para dizer.
Susannah deu um sorrisinho ao ouvir isso e não falou nada. Bix se voltou para Roland. — Vocês vêm de Lud, creio eu. Ouvi falar de Lud e de como as coisas estão por lá. Porque aquela era uma cidade maravilhosa, era sim. Já estava decadente e ficando estranha quando eu a conheci, mas ainda assim maravilhosa.
Os quatro trocaram um olhar que era todo an-tet, aquela telepatia peculiar que eles compartilhavam. Um olhar que também era maculado pela verecunda, o velho termo do Mundo Médio que significava vergo- nha, mas também mágoa.
— O que foi? — perguntou Bix. — O que foi que eu disse? Se pedi alguma coisa que vocês não dariam, eu rogo seu perdão.
— De maneira alguma — falou Roland —, mas Lud... — Lud é poeira ao vento — disse Susannah. — Bem — comentou Eddie —, não exatamente poeira. — Cinzas — falou Jake. — Do tipo que brilha no escuro. Bix refletiu a respeito disso, depois assentiu com a cabeça devagar. — Eu gostaria de ouvir, de qualquer forma, ou o quanto vocês conseguirem contar em uma hora. É o tempo da travessia.
Bix ficou irritado quando eles se ofereceram para ajudá-lo com os preparativos. Era o trabalho dele, disse o velho, e ainda era capaz de executá-lo — não tão rápido quanto antigamente, quando havia fazendas e pequenos entrepostos comerciais em ambas as margens do rio.
De qualquer forma, não havia muita coisa a fazer. Bix trouxe do ancoradouro um banquinho e uma grande argola de pau-ferro, subiu no banquinho para prender a argola no topo do poste, depois passou o cabo pelo aro. O velho devolveu o banquinho ao ancoradouro e voltou com uma grande manivela de metal no formato de uma letra Z. Bix a pousou com alguma cerimônia ao lado de um suporte de madeira no fim da balsa.
— Que nenhum de vocês chute aquilo para fora da balsa, ou eu jamais voltarei para casa — disse ele. Roland ficou de cócoras para examinar o objeto e chamou Eddie e Jake, que se juntaram a ele. Roland apontou para as palavras gravadas ao longo do traço do Z.
— Isto diz o que eu estou pensando?
— Sim — falou Eddie. — North Central Positronics. Nossos velhos amigos.
— Quando você conseguiu isso aqui, Bix? — perguntou Susannah.
— Há 90 anos, mais ou menos, se eu fosse chutar. Tem um lugar subterrâneo lá. — Ele apontou vagamente na direção do Palácio Verde. — Tem muitos quilômetros de extensão e está cheio de coisas que perten- ceram ao Povo Antigo, perfeitamente preservadas. Uma música estranha ainda toca vinda do alto, música do tipo que vocês jamais ouviram. Ela confunde as ideias. E não ousem ficar muito tempo por lá ou vocês for- mam feridas, vomitam e os dentes começam a cair. Eu fui uma vez. Nunca mais. Por um tempo, pensei que fosse morrer.
— Você perdeu o cabelo assim como os dentes? — perguntou Eddie. Bix pareceu surpreso e em seguida concordou com a cabeça. — Sim, alguns, mas eles cresceram de volta. Aquela manivela é de osso, vocês sabem. Eddie refletiu sobre isto por um momento. Como ele podia achar que a manivela era feita de osso? Então notou que o velho queria dizer aço. — Estão prontos? — perguntou Bix. Os olhos brilhavam tanto quanto os de Oi. — Posso zarpar? Eddie bateu continência imediatamente. — Ié, meu capitão. Rumo às ilhas do Tesouro, ié, nós vamos. — Venha e me ajude com estes cabos, Roland de Gilead, pode ser? Roland ajudou de bom grado.
A balsa percorreu lentamente o cabo diagonal ao ser puxada pela lenta correnteza do rio. Peixes pulavam ao redor enquanto o ka-tet de Roland se revezava na tarefa de contar ao velho a respeito da cidade de Lud e do que aconteceu com eles lá. Por um tempo, Oi observou os peixes com interesse, com as patas plantadas na borda da proa da balsa. Depois ele se sentou novamente e encarou a direção de onde o grupo veio, com o focinho erguido.
Bix resmungou quando eles contaram como saíram da cidade condenada.
— O Mono Blaine, vocês dizem. Trem expresso. Eu lembro. Havia outro também, embora eu não me recorde do nome...
— Patricia — falou Susannah.
— Ié, isso mesmo. Lindas laterais de vidro, ela tinha. E vocês dizem que a cidade foi destruída?
— Completamente — concordou Jake. Bix baixou a cabeça. — Que tristeza. — É sim — concordou Susannah ao pegar a mão de Bix e dar um leve apertão. — O Mundo Médio é um lugar triste, embora também seja muito bonito às vezes.
Eles chegaram à metade do rio, então, e uma leve brisa, supreenden- temente quente, lhes agitou os cabelos. Todos tiraram as camadas de roupas pesadas e se sentaram relaxados nas cadeiras de vime, que giravam de um lado para outro, supostamente para que seus ocupantes pudessem desfrutar melhor da vista. Um peixe grande — provavelmente do tipo que eles comeram na hora de encher o bucho — pulou na balsa e ficou ali, se debatendo aos pés de Oi. Embora o trapalhão geralmente matasse qualquer pequena criatura que cruzasse seu caminho, ele não parecia sequer ter notado. Roland chutou o peixe de volta para a água com a sua bota gasta.
— Seu throcken sabe o que está vindo — comentou Bix. Ele olhou para Roland. — Melhor tomar cuidado, ié?
Por um momento, Roland não disse nada. Uma memória nítida surgiu do fundo da mente, uma lembrança de uma dezena de gravuras coloridas à mão em um velho e querido livro. Seis trapalhões sentados numa árvore caída em uma floresta sob a lua crescente, todos com os focinhos erguidos. Aquele livro, Contos mágicos do Eld, Roland amava mais do que todos os outros quando era criança, e sua mãe lia para que ele dormisse no quarto da torre alta, enquanto um vento forte de outono cantava uma canção solitária, chamando o inverno. “O vento pela fechadura” era o nome da história que acompanhava a ilustração, e o conto era ao mesmo tempo terrível e maravilhoso.
— Por todos os deuses na colina — exclamou Roland, batendo na testa com a base da palma da mão direita sem dois dedos. — Eu deveria ter sabido logo de cara. Nem que fosse pelo calor crescente nos últimos dias.
— Quer dizer que não sabia? — perguntou Bix. — E você vem do Mundo Interior? — O velho fez um muxoxo de desdém.
— Roland? — indagou Susannah. — O que foi?
Roland a ignorou. Ele olhou de Bix para Oi, e de novo para o velho.
— A borrasca está chegando. Bix concordou. — Ié. É o que diz o throcken, e sobre a borrasca os throckens nunca erram. Além de saber falar um pouquinho, essa é a luz deles. — Que luz? — perguntou Eddie. — Ele quer dizer o talento dos throckens — explicou Roland. — Bix, você conhece um lugar do outro lado onde possamos nos esconder e esperar a borrasca passar?
— Por acaso eu conheço sim. — O velho apontou para os morros cobertos por bosques que desciam suavemente do outro lado do Whye, onde outro píer e outro ancoradouro, este sem pintura e bem menos grandioso, aguardava por eles. — Do outro lado vocês encontrarão o caminho adiante, uma pequena trilha que antigamente era uma estrada. Ela segue o Caminho do Feixe de Luz.
— Com certeza — concordou Jake. — Todas as coisas servem ao Feixe de Luz.
— Isso mesmo, jovem, isso mesmo. O que vocês usam, rodas ou quilômetros?
— Ambos — falou Eddie, mas, para a maioria de nós, quilômetros são melhores.
— Muito bem, então. Sigam a velha estrada de Calla por 8 quilômetros... talvez uns 9,5... e chegarão a um vilarejo deserto. A maioria dos prédios é de madeira e não serve para vocês, mas o salão comunitário é de pedra sólida. Vocês ficarão seguros. Eu já estive lá dentro, e há uma bela e enorme lareira. É melhor dar uma boa olhada na chaminé, é claro, pois vocês mandarão muita fumaça pelo cano acima, durante o dia ou dois que terão que esperar. Quanto à lenha, podem usar o que sobrou das casas.
— O que é esta borrasca? — perguntou Susannah. — É uma tempestade?
— Sim — confirmou Roland. — Eu não vejo uma há muitos e muitos anos. Sorte que a gente tem Oi conosco. Mesmo assim eu não teria sabido, se não fosse por Bix. — Ele apertou o ombro do velho. — Obrigado-sai. Todos agradecemos.
O ancoradouro da margem sudeste do rio estava à beira do colapso, como tantas coisas no Mundo Médio; havia morcegos pendurados de ponta-cabeça nas vigas e aranhas gordas que subiam correndo pelas paredes. Todos ficaram contentes em sair do ancoradouro e voltar para o ar livre. Bix amarrou a balsa e se juntou a eles. O grupo o abraçou, com cuidado para não apertá-lo com força e machucar os velhos ossos. Depois que todos tiveram sua vez, o velho secou os olhos, em segui- da se abaixou e fez carinho na cabeça de Oi.
— Cuide bem deles, sir Throcken. — Oi! — respondeu o trapalhão. Depois: — Bix! O velho se endireitou, e novamente eles ouviram os ossos estalarem.
Bix colocou as mãos na lombar e fez uma careta. — Você vai conseguir atravessar de volta numa boa? — perguntou Eddie. — Ah, ié — respondeu Bix. — Se fosse primavera, talvez não; o Whye não é tão plácido quando a neve derrete e a chuva chega. Mas agora? Molezinha. A tempestade ainda está um pouco longe. Eu giro a manivela um pouco contra a corrente, aí prendo com firmeza para que eu possa descansar e ela não gire ao contrário, e depois giro mais um pouco. Pode levar quatro horas em vez de uma, mas eu chego lá. Sempre cheguei, de qualquer maneira. Só queria ter mais comida para dar a vocês.
— Nós ficaremos bem — disse Roland.
— Ótimo, então. Ótimo. — O velho parecia relutar em ir embora. Ele olhou cada rosto, um de cada vez, com uma expressão séria, e depois sorriu e exibiu as gengivas sem dentes. — Que bom que nossos caminhos se cruzaram, não foi?
— Foi sim — concordou Roland.
— E, se voltarem por aqui, parem um pouco e visitem o velho Bix. Contem a ele suas aventuras.
— Faremos isso — disse Susannah, embora soubesse que eles jamais voltariam àquela direção. Era algo de que todos tinham consciência.
— E cuidado com a borrasca. Ela não é de brincadeira. Mas talvez vocês tenham um dia, até mesmo dois.
Ele não está andando em círculos, você está, Oi?
— Oi! — concordou o trapalhão. Bix suspirou e disse: — Agora, siga seu caminho que eu sigo o meu. Todos estaremos abrigados dentro em breve. Roland e seu tet começaram a seguir o caminho. — Mais uma coisa! — Bix os chamou quando deram as costas, e eles se voltaram para o velho. — Se vocês virem aquele desgraçado do Andy, digam a ele que não quero mais canções, nem quero que leia meu maldito horroscopo para mim!
— Quem é Andy? — perguntou Jake.
— Ah, deixa pra lá, acho que vocês nem vão se encontrar com ele, de qualquer forma. Esta foi a última palavra do velho sobre o assunto, e nenhum deles se lembrou delas, embora eles realmente tenham se encontrado com Andy, na comunidade agrícola de Calla Bryn Sturgis. Mas isso foi mais tarde, depois que a tempestade passou.

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