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Memória: Inferno no picadeiro

Fonte: Revista Época. Por MAURÍCIO MEIRELES

CENAS TRISTES
1. Foto da revista Flagrante! mostra palhaço com mamadeira queimada 2. O circo em cinzas. A lona pegou fogo, e a estrutura desabou sobre quem fugia 3. João Goulart e o ministro Tancredo Neves (à dir.). Goulart chorou ao visitar os queimados (Foto: Francisco Moreira da Costa/Lume Foto/Revista Flagrante (2) e reprodução (2))

O jornalista Mauro Ventura recupera a história da maior tragédia circense do Brasil, o incêndio do Gran Circo Norte-Americano


O calor de Niterói em dezembro de 1961 não impediu que todos corressem para ver o Gran Circo Norte-Americano chegar à cidade. De americano ele só tinha o nome. Seu dono era Danilo Stevanovich, um gaúcho de ascendência iugoslava. As jaulas com as girafas, os elefantes indianos e os leões – um verdadeiro zoológico itinerante – faziam a alegria das crianças. Havia poucas opções de lazer, e o circo era um grande acontecimento. Mas a expectativa acabou em tragédia. No dia 17, na sessão de abertura, o circo pegou fogo. Em dez minutos, as chamas devoraram a tenda. O número oficial é de 503 mortos, mas há quem fale em 1.000 – 70% das vítimas eram crianças. Muitos jamais foram encontrados.

A história do incêndio é contada em O espetáculo mais triste da Terra: o incêndio do Gran Circo Norte-Americano (Companhia das Letras, 320 págs., R$ 46), do jornalista Mauro Ventura, resultado de dois anos e meio de apuração. O dia ainda é lembrado com sofrimento por muitos moradores de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. O espectador Jorge Salles da Cunha, de 60 anos, ficou marcado. O impacto do noticiário e das fotos despertou pavor de incêndios. “Sou prevenido contra incêndios. As fotos dos corpos carbonizados ainda estão na minha memória”, afirma. Ele tem medo de lugares fechados e sempre procura as saídas de emergência de onde está. “Uma história assim marca as lembranças de um grupo porque fala de forças – naturais ou sobrenaturais – maiores que a pobre existência humana”, diz Everardo Rocha, antropólogo e professor da PUC-RJ. “Um livro sobre o assunto é muito importante. Rememorar é manter viva a força desse fenômeno.”
Histórias assim não ficam 50 anos vivas sem suas lendas, vítimas ou heróis (leia o quadro ao lado). No primeiro grupo, há um personagem folclórico. José Daltrino, um pequeno empresário de cargas, estava em casa quando saiu para o quintal e cobriu-se todo de barro. Segundo ele, uma voz do além lhe dissera para abandonar sua vida mundana e ir consolar as famílias das vítimas. De barba grisalha e bata branca, ele foi morar no terreno do circo. Virou o Profeta Gentileza, adversário do “capetalismo” e autor do bordão “gentileza gera gentileza”. Daltrino foi em busca de famílias como a de Lenir Siqueira, hoje com 75 anos. Ela, seus dois filhos e seu marido vestiram a melhor roupa. Foram ver a girafa Regina, xará da filha mais velha. Não escaparam quando a estrutura em chamas do circo desabou sobre o público. Lenir perdeu todos. Ficou nove meses no hospital, onde seu polegar foi amputado. “Ficar nove meses lá foi como nascer para uma nova vida. Tive de vencer várias batalhas”, afirma.
Na seção dos heróis, está a elefanta Semba. A principal saída do circo era estreita. Nervosa com a gritaria da multidão e atingida pelo fogo, começou a correr e rasgou um buraco na lona. Várias pessoas fugiram pelo caminho aberto por ela. A equipe de cirurgiões plásticos, liderada por Ivo Pitanguy, também fez reputação. Alguns procedimentos realizados eram inéditos na medicina, como o implante de pele liofilizada (desidratada por processo químico), uma doação do governo americano. “O trabalho na tragédia ajudou a cirurgia plástica a mostrar sua importância social e ganhar fama”, afirma Pitanguy.
A lista de culpados é mais nebulosa que a de heróis. Uma das conclusões do livro é que a tragédia foi agravada pelo descaso das autoridades. O principal hospital de Niterói estava em greve e se recusou a atender os primeiros feridos. O circo recebeu alvará de funcionamento mesmo sem ter saída de emergência. Sobre o culpado pelo incêndio, não há uma versão definitiva. O doente mental Adilson Marcelino Alves, o Dequinha, foi condenado depois de confessar o crime. As famílias das vítimas não acreditam que ele tenha sido o autor, pois costumava confessar crimes que não havia cometido. Nem sobre a cor da lona os entrevistados concordavam. Na impossibilidade de chegar a um consenso, Ventura registra as versões. Em meio às cinzas e à estrutura devorada pelo fogo, a verdade sobre o que ocorreu no dia do incêndio também desapareceu.

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